sábado, 26 de março de 2011

Olhos estrangeiros

Hoje eu vi uma família japonesa entrar no ônibus. Hoje eu vi uma criança de colo com olhos puxados e sorriso largo sorrir para mim. Ela brincava, tranqüila com a transparência do vidro. Exatamente: com a transparência, não com o vidro. Ela agitava-se e olhava ao seu redor, por aquelas frestas, o mundo estrangeiro e me dizia em língua universal – a língua da boca aberta e os dentes aparecendo - que tudo ia ficar bem. Mal sabe ela, na sua inocência espontânea e demasiada aconchegante, nova pra mim, eu diria (naquele momento de estranhamento e desconfortável insegurança), que a minha vida e a dela tinham passado por transformações irreversíveis. Não aquelas irreversibilidades corriqueiras, que até passam despercebidas. Aquela que marca seu comportamento e deixa uma cicatriz no limbo da alma.
Não sei exatamente o que trouxe aquela família junto com a criança até o Brasil. Minha imaginação que flutuava através dos pequenos acontecimentos da rua, evaporada em diversas situações se concentrou toda em adivinhar o motivo. Acredito que o terremoto os fizeram sair de lá – e não há como dizer se permanentemente ou não. O pobre bebê estrangeiro não sabe pelo que passou seu povo. E eu, pobre estrangeiro em mim, ainda tento entender pelo que passei sem racionalizar o irracionalizável.
E essa é a única coisa que eu e aquele bebê japonês temos em comum e talvez – além da condição de existir – será a única coisa que teremos por toda a vida: o fato de não sabermos pelo que passamos. Mas o bebê de olhos finos e sorriso delicado foi o único capaz de me atingir, naquele momento e até agora, de maneira que nenhuma outra palavra conseguiria. O bebê que preferia a transparência do vidro ao próprio objeto, ao sorrir em convalescença com meu coração banhado em agruras me disse apenas “tudo vai ficar bem”. Ele não sabia de nada. Mas disse. E eu estava precisando só ouvir. Sem entender. Só ouvir.