quinta-feira, 28 de julho de 2011

Prólogo

Se já desandas com a sorte,
O que lhe resta
Se não o porte da dor
Que encobre a morte
Da flor,
Com uma máscara
Plástica, reavivando-a
Mentirosamente.
A dor carinhosa
Companheira entorpecente
Caminha decente no horizonte
Esquecido da razão.
Tola satisfação
Dizendo-te:
Vá, dobre as barras da calça
Erga os olhos sobre as copas
Das árvores
Veja-se passarinho.
Canto não há
No objeto ilusório
Da decisão.
O silêncio comovido
Das lágrimas
Enxuga o término
Do contínuo alvorecer
Das idéias,
Escassas devido ao cansaço
Do corpo: projeta-se no corpo.

Pena de ti que
Sem, torna-se nulo
Com, torna-se outro
Junto, torna-se tolo
Único, torna-se pouco
E morto, torna-se útil.

quinta-feira, 23 de junho de 2011

Eu sim. E você?

Remédio mata. Mc Donald's, casas de frozen de yogurt e comida japonesa, academia e loja de roupas tem uma em cada esquina como a reproduzir em série seres humanos mal nutridos, desorientados e iguais. Televisão transforma em gelatina o que um dia ja foi de textura mais aproveitável. Cinema agora só em shopping, com pipoca de borracha, ao lado de um caixa eletrônico 24 horas. Música no meio da rua só com autorização do governo para não atrapalhar o ronco acalentador dos automóveis. Livro só se compra se a propaganda estiver estampada na traseira do ônibus com um selo de best seller. Poesia é coisa de maluco e quem não quer trabalhar é vagabundo. Beber, hoje em dia, só se for pra ficar "doidão" e não lembrar de nada. Levantar a voz e falar sobre as coisas bem alto é coisa de revolucionário/revoltado e o silêncio bem dito é usado como desculpa para calarmo-nos uns aos outros por falta de coragem de se expressar. Não se pode confiar mais em ninguém e o último que sair apague a luz e pule da janela. Terreno vazio, arborizado e verde é sinal de que ainda faltam prédios a construir. A Arte é o caminho mais rápido pra delinquência, morangos o ano inteiro são produtos transgênicos (milagre da tecnologia moderna), brisa do mar que consegue ultrapassar as barreiras da cidade são bênçãos sopradas (milagre da natureza da terra) e divertimento é fazer piada de quem se deu mal (ônus de uma sociedade carente dela mesma). Condenar o pecado original é como ser uma menininha virgem esperando o príncipe encantado: eternamente guardado em si até o juízo final. A América Latina é o continente do futuro cujos filhos têm preguiça de vivê-lo no presente. O cartão de crédito posterga a condenação pelo valor material e no verso das notas de dinheiro você vai encontrar o que ja não mais existe no mundo real. 



Eu teria comido a maçã. E você?

sábado, 28 de maio de 2011

Desatino: às vésperas do escárnio interior.

Me faltam lenitivos
para apascentar a calmaria
doutrinada pelo incômodo
da incerteza
Me faltam irrisórias
noites de percepção
da minha própria
falta de seriedade para com
os mandamentos do mundo
que se diz como o é
Me calam austeros
paradigmas da existência,
dizendo que o fazem
por pura preocupação com o outro
Distorce-se realidade em
sonhos comprados em brechó
por pura carência
de atualidade a qual se pode idolatrar
Vende-se pés descalços
como se fossem brinquedos
para evitar desabrochar
a espontaneidade escondida em cada calo
Lavam as mãos aqueles que tem
sob as unhas
sangue barato de homens puros.

Há de se concordar que
Desanuviar as lamúrias do mundo
E defender os olhos dos que ainda choram
Nada resolve se feito de dentro pra fora.

É preciso algumas janelas abertas
Para entrar ar
Mas também é preciso
Fogo para proteger o corpo
Afinal, bicho acuado se encolhe por instinto.
E vento frio nos encolhe por natureza.

Eu visto uma camisa de cambraia e me aqueço
Sob a chama de desilusão...
Era eu...
Aquém do que deveria ser.

terça-feira, 17 de maio de 2011

O começo do fim

Pergunto a você se suportaria a vida sem ser como ela é. Sem querer sair de casa e morar sozinho com 21 anos por conta da incapacidade de conviver com seus pais.
E tudo começa com a relação com os pais, obviamente. Você quer sair de casa porque não agüenta mais a família e acha que será maduro e independente ralando que nem um escravo pra ganhar alguns dinheiros e poder comprar o que te dizem que deves comprar.
E tudo começa com o dinheiro, obviamente. Aquela certeza cega de que a vida é merecedora de alguns pedaços de papel e tudo de mais valor no mundo pode ser trocado por ele. A partir daí tenta-se trocar dinheiro por sentimento, coração, alma. E descobre-se que não pode. E a tentativa de tomar à força provoca a imbecilização das relações humanas até que essa hereditariedade seja congênita.
E tudo começa com a ilusão, obviamente. Não sei se fajuta ou real. A questão é que quando é preferível não ter o controle sobre si mesmo e vê-se na facilidade de viver o motivo pra existir de forma mecânica e desumana, todas as ações da vida se baseiam num único e desprezível ponto: como vou fazer pra ganhar dinheiro? Como vou fazer pra sobreviver. E nessa selva, mato de espinhos, o homem canibaliza-se pra matar a fome de convicções.
E tudo começa com a convicção, obviamente. De que o trabalho e as formas que se criaram para interpretar tão ação no mundo moderno dignifica o homem; o dinheiro é necessário pra sobreviver; quem não corre atrás não conquista seu espaço; a mulher veio da costela do homem; o negro não é mais discriminado; o homossexualismo não é natural; a lei do silêncio proíbe a música a noite mas não as buzinas dos carros...
E tudo começa com as buzinas dos carros. Ensurdecem, calam-nos, gritam um carcarejar maquinal, metálico.

De carne e osso só restaram alguns livros, filmes e instrumentos musicais.
E como diz Affonso Romano de Sant’Anna, “Inauguramos a era da solidão coletiva”.

sábado, 16 de abril de 2011

Transitoriedade centrípeta.

Nunca fui de contar o tempo
Sempre quis descobri-me envelhecido
às custas da umidade de minha pele
e da gradativa falta de bilho nos olhos.

Rego as flores para que elas sobrevivam
ao calor exuberante que flutua
no asfalto da rua lá embaixo.
Rego as flores que nascem 
no asfalto da rua lá embaixo.

Nego que o asfalto da rua lá embaixo tenha dado a flor que vi nascer.

Sinto uma súbita novidade invadindo-me
em pequenas doses
do tamanho de cubos de açúcar
– daqueles que colocamos no café –.

A novidade é doce.
A vontade é insone.
O leite foi derramado
e o teremos de lamber no chão
para sentir o gosto do mundo.

Agora já sinto o rosto
e o vento atravessando-o.
Agora ja sinto o gosto
e o tento esconder da minha boca.
Caminho pelas ruas do descontentamento
como um fugitivo que volta à cidade que o subjulgou
depois de anos.

Tento obnubilar pessimismos
inocentemente confiantes de si
- os que pretendem dedicar-se a desacreditar a vida -
e me choco com a impreterível realidade
da invalidez das tentativas ousadas
do cerne da minha questão.

Dei-me em carne e sangue
e o faria o quanto fosse necessário
se isso fizesse com que eu repetisse
tudo de novo.

domingo, 3 de abril de 2011

Outono na cidade

As pedras-à-beira-mar do arpoador brilham ao serem banhadas pela água do mar como um diamante bruto em erosão. O limo que a cobre assobia num tom melodioso e calmo quando a brisa que evapora toca a pele desse que aqui vos fala.
Já é outono e não se é mais queimado pelo sol;
se é conduzido a queimar-se.
Já não se vê mais flores nas árvores;
as catamos no chão.
O sol já dorme mais cedo
e a noite acorda à tarde
com preguiça de levantar.
É outono na cidade...
Agora se busca calor no abraço dos corpos,
na saudade dos amores
e nos rabiscos dos poetas...

sábado, 26 de março de 2011

Olhos estrangeiros

Hoje eu vi uma família japonesa entrar no ônibus. Hoje eu vi uma criança de colo com olhos puxados e sorriso largo sorrir para mim. Ela brincava, tranqüila com a transparência do vidro. Exatamente: com a transparência, não com o vidro. Ela agitava-se e olhava ao seu redor, por aquelas frestas, o mundo estrangeiro e me dizia em língua universal – a língua da boca aberta e os dentes aparecendo - que tudo ia ficar bem. Mal sabe ela, na sua inocência espontânea e demasiada aconchegante, nova pra mim, eu diria (naquele momento de estranhamento e desconfortável insegurança), que a minha vida e a dela tinham passado por transformações irreversíveis. Não aquelas irreversibilidades corriqueiras, que até passam despercebidas. Aquela que marca seu comportamento e deixa uma cicatriz no limbo da alma.
Não sei exatamente o que trouxe aquela família junto com a criança até o Brasil. Minha imaginação que flutuava através dos pequenos acontecimentos da rua, evaporada em diversas situações se concentrou toda em adivinhar o motivo. Acredito que o terremoto os fizeram sair de lá – e não há como dizer se permanentemente ou não. O pobre bebê estrangeiro não sabe pelo que passou seu povo. E eu, pobre estrangeiro em mim, ainda tento entender pelo que passei sem racionalizar o irracionalizável.
E essa é a única coisa que eu e aquele bebê japonês temos em comum e talvez – além da condição de existir – será a única coisa que teremos por toda a vida: o fato de não sabermos pelo que passamos. Mas o bebê de olhos finos e sorriso delicado foi o único capaz de me atingir, naquele momento e até agora, de maneira que nenhuma outra palavra conseguiria. O bebê que preferia a transparência do vidro ao próprio objeto, ao sorrir em convalescença com meu coração banhado em agruras me disse apenas “tudo vai ficar bem”. Ele não sabia de nada. Mas disse. E eu estava precisando só ouvir. Sem entender. Só ouvir.